Entrevista com o prof. Fidelis Castro, egresso do PROFMAT e doutor em Matemática Aplicada pela UNICAMP

1) Nos conte um pouco sobre como se tornou professor de Matemática, sobre a sua trajetória acadêmica e profissional.

Sou natural de Vitória, Espírito Santo. Nasci em uma família bem simples. Minha mãe é vendedora de produtos cosméticos desde o final da década de 1970 e o meu pai era eletricista de automóveis. Ele faleceu quando eu tinha 21 anos. Cresci no bairro Boa Sorte, situado no município de Cariacica, na periferia da Grande Vitória. Estudei todo o Ensino Básico em  escolas públicas, primeiramente na rede municipal de Cariacica, depois na rede estadual.

Desde pequeno fui incentivado pela minha família a estudar “pra valer”, pois caso não o fizesse não conseguiria acesso a uma vida um pouquinho melhor do que aquela que tínhamos. Lembro, por exemplo, que a minha mãe, sempre que podia, me ajudava com as tarefas escolares de Matemática (e das outras matérias) e até elaborava algumas atividades extras para eu fazer, como continhas envolvendo as quatro operações, expressões aritméticas e problemas simples. Mais tarde ela passaria a bola exclusivamente para mim.

Quando eu tinha 14 anos de idade a minha família passava por severas dificuldades. Foi neste  período que uma das minhas tias, irmã da minha mãe, nos cedeu a casa de um dos seus meeiros para que morássemos durante 3 anos, lá no interior do Espírito Santo, atualmente município de São Roque do Canaã. Fui matriculado na escola estadual “Agrovila de Santa Júlia”.

Um dos maiores presentes que recebi ali no interior foi ter sido aluno do professor Nilo Schmidt, que ministrava aulas de Língua Portuguesa e Literatura. Ele me colocou no meu lugar como ser pensante. O fato é que adquiri muito mais gosto em estudar a partir dos seus incentivos. Mais do que isso, acho que foi a partir daí que comecei a vislumbrar a possibilidade de me tornar um professor um dia, não necessariamente de Matemática.

As minhas disciplinas preferidas no Ensino Médio eram Educação Física, Língua Portuguesa, História, Biologia e Química. Quando resolvi prestar vestibular, minha primeira opção era História, mas desisti de me inscrever. A segunda opção era Química, mas também desisti. Eu tinha medo de não ser aprovado na segunda etapa do vestibular, nas ditas provas discursivas. Eu tinha de entrar em uma universidade pública e precisava trabalhar.

Por ironia do destino (?), em algum dia de 1997 alguém me disse que o processo seletivo para curso de Matemática na Universidade Federal do Espírito Santo havia sido modificado e já não contava com as provas discursivas! Obviamente eu também gostava de Matemática, apesar de não ser a minha primeira opção. Mas essa informação extra de que eu não precisaria fazer as provas discursivas foi determinante para a minha escolha.

Passei no vestibular acertando quarenta e nove cento e vinte avos da prova objetiva. Mas ao entrar na Universidade, percebi que havia 50 vagas para o curso de Matemática, mas foram aprovados 150 alunos na primeira fase, três vezes o número de vagas! Descobri então que a segunda etapa era, na verdade, o primeiro semestre do curso. Com efeito, dos 150 pré-aprovados, permaneceriam como alunos regulares no curso apenas aqueles com as 50 melhores médias no primeiro semestre. Descoberto isto, não havia outra opção para mim a não ser estar entre os 50. Com muito foco, dedicação e persistência, consegui a tão sonhada vaga na graduação.

Todos sabemos que o mercado em busca de professores de Matemática é selvagem e voraz. Pude comprovar isso na prática, pois mesmo como aluno do segundo semestre, com apenas 18 anos de idade, comecei a trabalhar como professor designado temporariamente na rede estadual do Espírito Santo.  E de fato eu precisava trabalhar!

Sofri bastante para conciliar família, vida pessoal, trabalho e graduação, mas consegui me formar em 6 anos. Seguindo uma espécie de caminho próprio, embarquei na rede privada de ensino, onde fui professor de Ensino Fundamental, depois de Ensino Médio, dividindo meus horários com uma escola da rede estadual.

Mesmo sendo professor já há alguns anos e gostando do que fazia, uma importante  inquietação me acompanhava na minha vida profissional: eu não me sentia completamente realizado simplesmente dando aquelas aulas.  Achava que devia mudar de área. Então, como um desajuizado, comecei a atacar concursos públicos às cegas, mesmo sem estudar. Tudo o que eu queria era algum tipo de estabilidade. Fui aprovado em um para bancário, mas desisti de tomar posse. Não era a minha praia.

O tempo foi me mostrando que eu devia mesmo era ser professor, mas alçando alguns voos diferentes dos usualmente dados. Afinal de contas, eu gostava (e gosto!) de dar aulas, de planejar aulas, dos alunos, da vida dinâmica, etc. Então foquei em buscar estabilidade como professor.

Em agosto de 2006, aos 26 anos de idade, fui aprovado num concurso para professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes). Deixei as aulas do estado, mas não todas as da rede privada. Levei os dois trabalhos concomitantemente até o início de 2010.

A tempo de evitar uma catástrofe, percebi que trabalhar de manhã, à tarde e à noite não era “vida de gente”: a dedicação ao meu trabalho precisava estar em harmonia com a minha formação técnico-científica, com a minha humanidade e com o autocuidado. Tudo isso para que eu pudesse dar o melhor de mim como “ser” humano. Foi com esse objetivo que em 2010 pedi demissão da rede privada e mudei o meu regime de trabalho no Ifes para dedicação exclusiva. Os motivos foram puramente ideológicos. Decidi me dedicar ao ensino público, gratuito, em suas inúmeras vertentes e investir em minha formação. Atualmente continuo trabalhando como professor de Matemática no Ifes, especificamente no Ensino Médio e no Ensino Superior, além de me dedicar à pesquisa científica e a outros projetos de cunho pessoal.

 

2) Você é egresso da primeira turma do PROFMAT. Por que decidiu cursá-lo e como isso mudou a sua vida?

A partir de 2010 comecei a me aproximar novamente da Universidade e de projetos relativos à OBMEP. Me tornei professor do Programa de Iniciação Científica Júnior (PIC), do Programa Olímpico de Treinamento Intensivo (POTI) e moderador de fórum no hotel de Hilbert. Os professores que na época trabalhavam na OBMEP comentaram comigo sobre o programa PROFMAT, que teria o seu primeiro processo seletivo em 2011, sobre a proposta e o objetivo do programa, e me incentivaram a realizar o processo seletivo.

Decidi realizar o processo seletivo e posteriormente cursar o PROFMAT por dois motivos principais: em primeiro lugar, porque acreditei em sua proposta. Afinal, pense comigo. Por mais didática, amor e entrega que um professor de violão tenha, como poderia ele me ensinar técnicas específicas da arte de tocar violão como bends, abafamentos, harmônicos, ligaduras, surdinas, palhetadas alternadas, arpejos e tappings, se não as dominasse antes de mim? E em mais profundidade do que eu? (A transcrição dessa metáfora para o mundo do ensino de Matemática fica a cargo do leitor conhecedor do principal objetivo do PROFMAT). Em segundo lugar, vislumbrei, por meio do PROFMAT, a possibilidade de aliar meus trabalhos relativos a Olimpíadas de Matemática e a minha experiência profissional como um todo a um projeto final de curso que pudesse servir de subsídio para professores de Matemática estudarem e trabalharem com seus alunos. Com o PROFMAT eu sairia da mesmice do dar aula no cotidiano e abarcaria novas frentes de trabalho, ligadas, por exemplo, a formação de professores e a aspectos mais profundos relativos ao Ensino de Matemática. Depois acabariam surgindo outras frentes de trabalho.

Obviamente o PROFMAT mudou a minha vida! Deu maior significado às coisas que eu já fazia e agregou valor a elas. Além disso, me deu maior embasamento matemático, contribuiu para o aprimoramento da qualidade da minha redação matemática e da minha capacidade argumentativa. Além disso, por meio do PROFMAT pude construir uma Networking dotada de parcerias de trabalho e amigos que sentem e pensam de modo similar a mim. Poderia dizer ainda que, de modo inesperado, uma outra coisa que o PROFMAT me deu foi uma vontade imensa de estudar mais Matemática.

 

3) Por que você decidiu tentar uma vaga no doutorado em Matemática Aplicada na Unicamp? Conte-nos um pouco como foi isto.

Eu sempre sonhei estudar fora do estado do Espírito Santo. Pensava nas coisas que poderia aprender, imaginava pessoas que poderiam passar pela minha vida e pensava em experimentar novos mundos intelectuais. Mas isso se dava de modo meio nebuloso, tudo meio que junto, misturado e desorganizado. Durante o curso PROFMAT esse sonho foi tomando forma por meio das conversas que tive com algumas pessoas importantes, principalmente com meu amigo Edson Santos (in memorian) e com minha amiga Silvia Louzada, mas também com alguns professores. Fui incentivado diretamente por vários deles, especialmente pelo professor Moacir Rosado Filho, meu orientador no PROFMAT, pelo professor Fábio Júlio Valentim e pelo professor Etereldes Gonçalves Júnior.

Quando terminei o mestrado, obviamente bateu um grande sentimento de felicidade, mas também uma vontade de “quero mais”. Pensei no meu sonho. Pensei na minha esposa e nas minhas duas filhas e em como seria difícil uma possível mudança brusca de vida. Na época, a minha filha mais velha tinha 3 anos e meio e a mais nova tinha dois meses. Seria uma barbárie da minha parte optar por um doutorado nesse momento? Eu não poderia esperar um pouco? Pelo menos até que a minha filha mais nova crescesse mais um pouquinho? Bom, decidi juntamente com minha esposa que estudaria para um processo de seleção para doutorado em Matemática Aplicada. Sabia que queria Matemática Aplicada, mas estava em dúvida em tentar Usp, Ufrgs ou Unicamp.

Optei pela Unicamp por achar o processo de seleção menos burocrático e pelo notável gabarito da instituição, que está entre as melhores universidades jovens do hemisfério sul. O processo seletivo consistia na análise de 3 ou 4 cartas de recomendação, de dados documentais fornecidos via um sistema, e pela nota obtida em uma prova discursiva de 10 questões, sendo 5 de Álgebra Linear e 5 de Cálculo Avançado.

Baixei na internet o banco de provas de seleção dos anos anteriores, imprimi e fiz uma espécie de apostila de cento e poucas páginas, deixando o espaço de uma folha para resolver cada questão. Digitando trechos dessas questões no Google, encontrei um material de Álgebra Linear, totalmente disponibilizado online, que continha várias delas. Fiz o download desse material, de autoria do professor Petrônio Pulino, da Unicamp, e o devorei. Depois disso, estudei inúmeros tópicos de Cálculo que não lembrava. Finalmente, parti para a resolução das provas de seleção dos anos anteriores. Consegui resolver a grande maioria das questões, às vezes trabalhando sozinho, às vezes com a ajuda de alguém. Fiz o processo seletivo em dezembro de 2014 e fui aceito no programa de doutorado.

 

4) Fale-nos um pouco sobre o seu trabalho no doutorado.

Depois de cursar o primeiro semestre, conheci o brilhante professor Marcos Eduardo Ribeiro do Valle Mesquita, que pesquisa nas grandes áreas de Inteligência Computacional e Biomatemática. Perguntei se ele aceitaria me orientar. Conversamos durante um bom tempo e ele me passou um material para estudar. Marcamos um reencontro e depois de alguns dias foi oficializada a orientação.    Foram mais de 60 encontros de orientação durante o doutorado.

Além da mudança de programa, já que saí de um mestrado voltado para formação matemática do professor e fui para a Matemática Aplicada, optei por uma área de pesquisa que desconhecia até então. De fato, fui para a grande área de Inteligência Computacional, trabalhar especificamente com redes neurais artificiais.

Eu e o prof. Marcos optamos por estudar generalizações de uma rede neural concebida em 1982, a qual é conhecida na literatura como rede de Hopfield. A rede de Hopfield é um tema interessantíssimo por si só. Em suma, ela pode ser vista como um sistema dinâmico discreto não linear e dissipativo em termos de energia. Além dessa atratividade, essa rede neural possui aplicações em diversas áreas de pesquisa como Memórias Associativas, Otimização, Visão Computacional, Reconstrução de Imagens e Controle.

Nosso  trabalho foi mais voltado para a Matemática Pura, apesar de termos escrito uma subseção com algumas aplicações. Esssencialmente, fizemos o seguinte. Em dois capítulos nós estudamos a estabilidade (no sentido de Lyapunov) de algumas generalizações da rede de Hopfield em domínios complexos e quaterniônicos. Conseguimos novos resultados que contrapõem alguns resultados publicados na literatura. Além disso, no último capítulo do nosso trabalho definimos novos sistemas de números hipercomplexos, uma família de funções de ativação hipercomplexas, de funções energia e uma ampla classe de redes de Hopfield hipercomplexas. Conseguimos generalizar vários resultados da literatura.

 

5) Quais foram os principais desafios encontrados durante o doutorado?

Um dos meus primeiros (e constantes) desafios foi aperfeiçoar meus conhecimentos de língua inglesa. Essa necessidade veio do fato de que o material de estudo nas disciplinas são livros escritos em inglês, os artigos científicos para pesquisa são escritos em inglês e os meios de comunicação usados para divulgação de nossos trabalhos científicos são, predominantemente, dependentes de língua inglesa. Atualmente, mesmo congressos ou revistas nacionais recomendam que os trabalhos sejam escritos em inglês.

Um segundo desafio foi me aproximar mais do computador. Ferramentas para construção de imagens, fluxogramas e esquemas são indispensáveis. Latex é vida. Além disso, saber programar é algo sempre bem vindo.

 

6) E daqui em diante? Quais os seus planos?

Meus planos são continuar me dedicando às atividades de ensino e pesquisa no Ifes, contribuir em dois programas de pós-graduação na Ufes, e futuramente realizar um estágio de pós-doutorado fora do Brasil. Os dois primeiros já estou fazendo.

Por exemplo, na semana passada submeti o projeto intitulado “Um Ferramental para Tratamento Simbólico de Dados de Séries Temporais Aplicado ao Estudo de Itinerários Acadêmicos” para o PIBIC institucional. Por meio desse projeto pretendo desenvolver um arcabouço conceitual e técnico para análise de grandes volumes de dados multidimensionais temporalmente organizados, visando a compreensão de relações de causa e efeito de fenômenos caracterizados pela produção de eventos no domínio do Ensino no Instituto Federal do Espírito Santo.

Estou escrevendo um projeto para o CNPq com o objetivo de dar continuidade às minhas atividades de pesquisa do doutorado. Além disso, estou cooperando com o PROFMAT, na Ufes. Em alguns meses comporei banca de três defesas no programa.